O instituto da coisa julgada tem suas origens remotas no direito romano. A sua concepção e persistência ao longo dos séculos tem um motivo muito simples: o direito não pode conviver com discussões infinitas, com a eternização dos litígios e a insegurança social. Assim, uma das mais importantes finalidades do sistema jurídico é a de pacificar os interesses contraditórios e talvez tenha sido este o motivo da longevidade da res iudicata.
O primeiro capítulo aborda contexto histórico e doutrinário em que surge a concepção de coisa julgada e as razões pelas quais o instituto é apto para a pacificação das controvérsias afim de que não haja a perpetuação da dos conflitos que naturalmente surgem em qualquer agrupamento social.
São expostos e analisados, no capítulo segundo, os posicionamentos favoráveis à relativização com base na ponderação entre o princípio da justiça e da segurança jurídica. Advogam estes doutrinadores que nenhum princípio é absoluto e que nenhum sistema jurídico pode suportar uma sentença injusta. Além disso, há um breve esboço do contexto histórico em que surgiu a discussão da relativização da coisa julgada.
Por fim, abordam-se os efeitos da relativização da coisa julgada no direito como um todo a partir da hipótese de que todas as decisões transitadas em julgado são passíveis de revisão.
Utilizou-se a metodologia de pesquisa bibliográfica e comparação histórica do instituto, na perspectiva qualitativa, hermenêutico-descritiva. A diretriz fundamental foi a de analisá-lo tal como foi concebido e as modificações que sofreu ao longo do tempo e como estas alterações produz efeitos adversos ao sistema jurídico.
A DOGMÁTICA DA COISA JULGADA
A coisa julgada sempre foi vista como um instituto intocável, um verdadeiro dogma que não está sujeito a alterações e relativizações. A ocorrência da coisa julgada no mundo jurídico era tida como presunção de verdade, sustentada desde Ulpiano como res iudicata pro veritate habeatur, isto é, que que ela vale como verdade e tinha efeitos absolutos: seria capaz de transformar o preto no branco, o preto no quadrado, o falso no verdadeiro. Obviamente há exageros quanto à caracterização do instituto, mas o fato é que se trata de um importante instrumento de pacificação social (Batista, 2003; Câmara, 2008; Júnior & Nery, 2018). Não obstante a sua posição histórica que a considera elemento permanente e dogmático do direito, a res iudicata tem sofrido significativas modificações, seja mediante previsão em normas abstratamente, seja por decisões judiciais que a condicionam ao critério da constitucionalidade e da justiça.
Contexto histórico e filosófico
A abordagem do instituto da coisa julgada requer, necessariamente, um enfoque histórico, que regressa à antiguidade, que não somente diz respeito à aplicação contextual deste mecanismo, mas ao caráter mitológico do papel do direito. Tanto em sua origem grega quanto romana, a atividade judicante implica a adjudicação de um direito a alguém. Nas origens gregas, a deusa Díkê (Δίκη) administra a justiça, tendo à sua mão direita uma espada e na esquerda uma balança, com a ausência do fiel ao meio. A atribuição era feita quando se igualavam os pratos na balança. Na simbologia mitológica romana, o papel é representado pela Deusa Iustitia, que possui olhos vendados e uma balança com o fiel ao meio. Estando o fiel no prumo (rectum), atribui-se o direito à parte correspondente. Quando se trata de direito de fundo religioso ou em que haja um contexto mitológico de atribuição de direitos e deveres, a certeza e a justiça da decisão não são submetidas ao crivo da dúvida e da revisão pelos mortais. Com exceção das próprias divindades, que é o caso do belo retrato da tragédia grega Oréstia escrito por Ésquilo, em que Atenas aplaca a ira das fúrias das devido ao processo que inocentou Orestes por um matricídio (Climnestra), por ter sua mãe assassinado seu pai Agamenon. Afirma a deusa: “deveis evitar que vossa imensa cólera vos estimule a perseguir encarniçadamente os homens!” (Ésquilo, 2014, p. 185). A irresignação não é um sentimento exclusivo dos homens, conforme o demonstra a história contada por Ésquilo. Contudo, a pacificação é sempre necessária e nenhuma obrigação pode se eternizar, sob pena de tornar a vida insuportável.
Para análise do instituto, abordar-se-á, brevemente, sua raiz romana, pelo aspecto externo, que há um esboço dos respectivos momentos históricos que dão base aos institutos jurídicos. Aborda-se, do mesmo modo, o aspecto interno, no qual são investigados os institutos em si mesmos, já inseridos no contexto histórico.
Sebastião Cruz adota o critério que divide a história do Direito Romano em quatro épocas históricas: a arcaica (753 a. C.-130) que se inicia no período da fundação lendária de Roma e termina em 130 a. C. com Lex Aebutia de Formulis; a clássica (130 a. C.-230 d. C.), em que se inaugura o agere per formulas; a pós-classica (230-530), que é a pior fase do direito romano, sem individualidade própria e a justinianeia, (530-565) (Cruz, 1984, pp. 39-51). O período arcaico (753 a. C.-130 a. C.) é a época em que estado romano inicia sua formação, mas ainda de forma rudimentar, sem a separação entre as esferas religiosa, jurídica e política, além de ser um direito privativo dos cives - ius civile (somente a partir de 242 a. C. é que se cria um direito aos non cives, isto é, o ius gentium); o período clássico (130 a. C.-230 d. C.) diz respeito à fase da culminação do direito romano, considerado modelo para as civilizações seguintes. Atinge-se a exatidão do direito, característico da estilização da casuística, ou seja, abstração de elementos jurídicos não essenciais ao caso concreto, criando-se elemento jurídicos não especulativos para o caso em análise; o período pós clássico (250- 530) se caracteriza por um momento sem individualidade própria, de intensa reelaboração anônima dos conceitos anteriores, mediante compilações e resu- mos, além de ser identificado pela confusão terminológica e conceitual, sim- plificação dos institutos, sobretudo pela influencia do direito local, dos povos dominados pelos romanos e pelos povos bárbaros. É conhecido como Direi- to Romano vulgar - Vulgarrecht; o último período é conhecido como época justianeia (530-565). Inicia-se com a elaboração do Corpus Iuris Civilis até a morte do imperador Justiniano. Caracteriza-se pela generalização, atualização e compilação Ius Romanum (Alves, 2012; Cruz, 1984, pp. 43 - 51; Pepino, 2006).
Esta é a metodologia utilizada por Sebastião Cruz. Quanto ao aspecto externo, ele adota o critério que divide a história do Direito Romano em quatro épocas históricas: arcaica; clássica; pós-clássica; e justiniana (Cruz, 1984, p. 43).
Quanto ao aspecto interno, são relevantes os seguintes períodos processuais:
-
Legis Actiones (até 149 a. C.): o direito era considerado um conjunto de ações e o processo constituía-se sob a forma oral. Ele possuía duas fases: uma, in iure, perante o praetor 1 -que dizia o direito, o iuris- dictio; e a fase apud iudicem, 2 perante o iudex, 3 que era encarregado das questões de fato (Pepino, 2006, p. 28 ).
-
Lex Aebutia de formulis 4 (de 149 a. C. a III d. C.) -período do ius honorarium 5 - ius gentium. Surge para mitigar o intenso forma- lismo da legis actiones.
-
Fase da Cognitio Extraordinaria 6 -em que há a institucionali- zação da justiça pública com o marco em 27 d. C.
Nas etapas das legis actiones e Lex Aebutia de formulis, a eficácia da sentença era resultado do compromisso das partes. Na terceira etapa, o Estado assume a função pública de administrar a justiça e a sentença. Trata-se de ato dotado de ius imperium, ainda que neste período a coisa julgada se confunde com o próprio objeto do litígio. (Pepino, 2006, p. 29 ). Este processo da institucionalização da definitividade da sentença ocorreu lentamente por diversos séculos em que se transitou de um procedimento de duas fases, com um juiz privado para uma única etapa mediante a adjudicação estatal.
A partir desta origem romana, parte-se para a discussão doutrinária, baseando-se no direito romano para se definir a natureza da coisa julgada, se é efeito da sentença, ou se é atributo da própria sentença. Além disso, discute-se qual é o fundamento da coisa julgada.
Liebman (1984) inicia esta discussão ao afirmar que é uma opinião comum considerar a coisa julgada como efeito da sentença e que esta ideia se baseia na tradição romana ao se sustentar que a actio bastava para configurar a res iudicata, porque o resultado do julgamento não diferia, em nada, das outras obrigações. Deste modo, “para os clássicos era a res iudicata verdadeiramente o único e exclusivo efeito do iudicatum e sem que, por isso, viesse a significar a atribuição duma eficácia especial, visto como aquele não exorbitava do campo das relações obrigatórias” (Liebman, 1984, p. 4).
A autoridade da sentença tinha origem na presunção da verdade, de origem justiniana e que se difundiu pelo medievo até o início do processo de codificação do direito, em especial o Código Civil Napoleônico que atribuíra à coisa julgada uma presunção legal, no art. 1350, ao se afirmar que “La présomption légale est celle qui est attachée par une loi spéciale à certains actes ou à certains faits, tells sont, [...] 3º L’autorité que la loi attribue à la chose jugée” 7 (France, 1804). Antônio do Paso Cabral, citado por Senra, afirma que “Ulpiano sustentava, no célebre aforisma res iudicata pro veritate habetur, que a coisa julgada ‘vale como verdade’” (Pepino, 2006, p. 29 ; Senra, 2019, p. 80).
Savigny desenvolve uma teoria da coisa julgada como ficção da verdade. (Pepino, 2006, p. 30 ). Senra resume os posicionamentos doutrinários sobre a natureza da coisa julgada:
Na vertente das (a) teorias materiais, situar-se-iam os entendimentos da coisa julgada como: a.1 presunção da verdade (Ulpiano); a.2 ficção da verdade (Friedrich Carl von Savigny), ou a.3 lex specialis (Oskar von Bülow, Otto Bachmann). Já na vertente das (b) teorias processuais, teríamos os entendimentos da coisa julgada como: b.1 presunção de autoridade (Eduardo J. Couture); b.2eficácia da declaração (Konrad Hellwig); b.3 extinção do dever jurisdicional (Ugo Rocco e Guilherme Estellita), ou b.4 qualidade da sentença e de seus efeitos (Enrico Tullio Liebman). Já na vertente das (b) teorias processuais, teríamos os entendimentos da coisa julgada como: b.1 presunção de autoridade (Eduardo J. Couture); b.2 eficácia da declaração (Konrad Hellwig); b.3 extinção do dever jurisdicional (Ugo Rocco e Guilherme Estellita), ou b.4 qualidade da sentença e de seus efeitos (Senra, 2019, p. 80 ).
Chiovenda, no sec. xx, identifica a autoridade da coisa julgada na vontade do Estado, aplicando a lei ao caso concreto, mediante declaração da vontade da lei (Liebman, 1984; Pepino, 2006). Assim, Chiovenda relacionou a sentença com o elemento “imperativo, ao ato de vontade contido na sentença, não pode deixar de ver na coisa julgada senão uma produção de certeza indiscutível” (Liebman, 1984, p. 16). Liebman critica estes posicionamentos e defende que a autoridade da coisa julgada não se caracteriza como um efeito da sentença, mas a vê como um modo, uma manifestação e produção de seus efeitos (Liebman, 1984, p. 40).
Conceito de res iudicata
Entende-se por coisa julgada como uma situação jurídica, mediante cognição exauriente, ocorrida após o trânsito em julgado e marcada pela imutabilidade e indiscutibilidade da decisão, a fim de conferir segurança jurídica e um mínimo de previsibilidade ao direito (Dinamarco, 2001; Ramina, 2016; Senra, 2019). Trata-se da essência da jurisdição. Couture afirma que “Si el acto no adquiere real o eventualmente autoridad de cosa juzgada, no es jurisdiccional. Si un acto adquiere autoridad de cosa juzgada es jurisdiccional. No hay jurisdicción sin autoridad de cosa juzgada” 8 (Couture, 1958).
Deste modo, a coisa julgada é a razão de ser da jurisdição. Trata-se de uma verdadeira garantia constitucional que recebe a sua legitimidade social e política da necessidade de se garantir a previsibilidade e segurança nas relações jurídicas, que é um importante elemento apaziguador dos conflitos sociais. Isso ocorre porque todo processo judicial é um potencial gerador de angústias e incertezas (Dinamarco, 2001) e todo sujeito racional, que não utilize do processo com a finalidade única de prejudicar ou para satisfazer exclusivamente sentimento pessoal, possui interesse na conclusão do processo, ainda que sucumbente, porque quando os procedimentos são previsíveis e há segurança no direito, há possibilidade de pacificação e concordância com os resultados, ainda que, ressalte-se, contrários aos interesses da parte. De acordo com Luhman, o resultado do processo distancia-se dos conflitos iniciais que o oportunizou, permitindo-se uma maior aceitação do término da relação processual. A comunicação efetiva das partes durante um processo, mediante relação dialética, são elementos fundamentais para atribuir legitimidade ao procedimento (Port, 2015, p. 170 ) e gera maior estabilidade social.
De acordo com Tércio Sampaio Júnior, Luhman compreende a sociedade como um todo estruturado que exclui o homem particular deste sistema, isto é, o sentido do sistema social não coincide com o do homem concreto. O direito é, por conseguinte, um elemento e um limite definidor das ações humanas, que a todos se impõe e que estabiliza as perspectivas particulares dos indivíduos, de modo a afastar as ilusões. O sistema, para Luhman é um todo diferenciado, mas que se diferencia do mundo circundante. Todo sistema reduz possibilidades de ocorrência dos fenômenos, isto é, não é aberto e contingente. Assim, a estrutura do sistema se opõe à instabilidade. O problema proposto é: até que ponto o direito como estrutura se legitima? Assim, uma estrutura legítima é entendida como aquela que é apta a gerar aceitação de decisões ocorridas no seio desta conjuntura. Não se busca uma decisão última, um regresso ao infinito, numa ideia do primeiro motor aristotélico, mas baseia-se a legitimidade pelo procedimento inerente à tomada de decisão. Especificamente ao procedimento judiciário, o conflito direto entre as partes é minimizado mediante a substituição do processo decisório por diversos sujeitos em instâncias distintas. Nesta perspectiva, a natureza dos procedimentos judiciais induz a uma maior aceitação do resultado. (Luhmann, 1980).
Quanto à distinção entre coisa julgada formal e material, pode-se afirmar que a primeira diz respeito à preclusão das possibilidades de dar continuidade à discussão por meio de recursos, além de ser uma qualidade da sentença e a segunda refere-se à autoridade deste fenômeno, por meio da imutabilidade dos efeitos substanciais de uma sentença de mérito e que está condicionada à formação da coisa primeira (Almeida; Brito, 2010; Dinamarco, 2001; Liebman, 1984).
Fundamentos da coisa julgada
A decisão judicial é uma das únicas que é apta a gerar a coisa julgada - admite-se o trânsito em julgado da sentença arbitral após o prazo decadencial in albis de 90 dias, previsto no art. 33, §1º da lei 9.307 de 1996 (Presidência da República, 1996). Isso ocasiona a impossibilidade de se discutir uma decisão judicial, com exceção das hipóteses típicas de ação rescisória.
O argumento fundamental dos que defendem a indiscutibilidade da coisa julgada apoia-se na segurança que este instituto produz, isto é, baseia-se nos resultados estáveis de uma demanda com trânsito em julgado, ainda que a sentença não alcance a maior justiça no caso concreto. Além disso, o processo é o “instrumento de acesso à justiça, mas não há justiça sem segurança jurídica” (Góes, 2008, p. 17 ).
A decisão judicial transitada em julgado é um instrumento de pacificação social. Sem o caráter de definitividade para apaziguar os conflitos, a sociedade se torna um lugar insuportável de conflitos constantes, o que é similar ao estado do homem sem sociedade.
Hobbes afirma que os homens em seu estado natural, antes de entrarem na sociedade, viviam numa Guerra de todos contra todos. “It cannot be deny’d but that the natural state of men, before they entr’d into Society, was a meer War, and that not simply, but a War of all men, against all men” 9 (Hobbes, 1983, p. 49). No Leviathan, Hobbes afirma que a condição do estado de natureza, de absoluta Liberdade, implica anarquia e condição de Guerra.
That the condition of mere nature, that is to say, of absolute liberty, such as is theirs that neither are sovereigns nor subjects, is anarchy and the condition of war: that the precepts, by which men are guided to avoid that condition, are the laws of nature: that a Commonwealth with- out sovereign power is but a word without substance and cannot stand 10 (Hobbes, 2017, p. 218 ).
Para Hobbes, o medo obriga o homem a atribuir ao Estado o poder para conciliar os interesses individuais. Trata-se, segundo Luciano de Crescenzo, do egoísmo hobbesiano (Crescenzo, 2012). Deste modo, as decisões judiciais definitivas possuem finalidade social relevante, afastando o egoísmo hobbesiano do estado de natureza em que cada um somente atinge o seu próprio interesse a qualquer custo, ainda que com suporte em mecanismos de violência. Por isso, quando o Estado toma para si a solução de conflitos com definitividade, ele se torna o mais importante elemento de pacificação, porque impede o exercício indiscriminado da autotutela.
Deste modo, para Ihering, o fim do direito é a paz. “Meio, por mais variado que seja, reduz-se sempre à luta contra a injustiça. A ideia do direito encerra uma antítese que se origina nesta ideia, da qual jamais se pode, absolutamente, separar: a luta e a paz; a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo” (Ihering, 2007). Diante disto, neste entendimento da coisa julgada a partir da segurança, é preferível a existência de uma sentença parcialmente injusta do que uma sentença impugnada a todo momento, porque aquela é um instituto apto a, potencialmente, apaziguar os conflitos.
O processo é um mecanismo de construção individualizada da norma jurídica (Presidência da República, 1988) e a justiça deve ser revelada no processo, mediante contraditório e ampla defesa, por meio de procedimentos e garantias processuais que assegurem a participação e o lugar de fala dos sujeitos. Por conseguinte, adotando-se a teoria de Habermas de ação comunicativa, o processo adequado pressupõe a razão comunicativa e requer a participação de todos os envolvidos. Por essa razão, a sentença deve ser o resultado do que for produzido durante a instrução, mediante a produção de um discurso compartilhado (Lima, 2019, p. 11 ).
Ao contrário da razão comunicativa, a razão instrumental nasce da necessidade humana de dominar a natureza, de acordo com Max Horkheimer, citado por Reale e Antiseri (2006, p. 477) . A razão é identificada com dominação, por meio de uma “radicalização da racionalização no sentido weberiano” e que desfaz os modos de viver independentes da coerção (Bettine, 2021, p. 9 ). Por isso, a participação dos sujeitos processuais e a justificação das decisões durante o processo gera relações interativas e comunicativas e afastam, em tese, a dominação por uma razão estritamente instrumental.
A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Será abordado neste capítulo as posições doutrinárias favoráveis à relativização da coisa julgada e os motivos delineados pelos respectivos autores que justificam graduar a segurança jurídica em favor de outros princípios igualmente relevantes, como a justiça da decisão. Aborda-se, também, o contexto histórico em que surge a tese da necessidade da relativização, primeiramente com o instituto da querela nullitatis insanabilis e Gesetz über die Mitwirkung des Staatsanwalts in bürgerlichen Rechtssachen (Lei de Intervenção do Ministério Público no Processo civil).
Argumentos favoráveis à relativização da res iudicata
Autores como Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior e o ex-ministro José Delgado do Superior Tribunal de Justiça advogam que a coisa julgada não merece prosperar quando há determinadas decisões que se constituem em teratologias e que atingem valores como a justiça e a constitucionalidade das leis. Deste modo, eles entendem que é possível a existência de um processo que anule a coisa julgada quando a decisão estiver corrompida (Almeida & Brito, 2010, p. 177 ). A professora Gisele Leite afirma que dogma da coisa julgada é incompatível com os novos tempos, com a dinâmica que marca o sistema social e a justiça e que ele não atende aos objetivos do processo. Afirma ainda que “chega um dia em que a ne- cessidade de certeza cede a vez à necessidade de eticidade e solidariedade” (Leite, 2008).
Para Humberto Theodoro, a segurança jurídica não é um princípio absoluto e pode, em determinadas circunstâncias, ser superada pelo princípio da justiça, o que ocorre, por exemplo, com as hipóteses legais que admitem ações autônomas de impugnação típicas. 11 Afirma que “segurança jurídica e justiça são, aliás, os dois elementos essenciais aos fundamentos do Estado de Direito. A ordem jurídica procura constantemente harmonizá-los” (Júnior, 2006, p. 38 ).
Os relativistas da coisa julgada acolhem a tese de que é “insuportável conviver num sistema processual em que uma decisão de carga lesiva não possa ser revertida” (Góes, 2008, p. 164 ). Ademais, o princípio da segurança jurídica não pode desfazer a lógica nem gerar decisões absurdas e, por este motivo, pondera Góes (2008) que “o dogma da coisa julgada de Scassia que ‘faz do branco preto, do quadrado redondo e do falso verdadeiro’, não pode mais subsistir” (p. 164).
Ada Pellegrini Grinover, citada por Dinamarco (2001) , relata um caso cuja controvérsia versava sobre uma anulação de escritura de reconhecimento de filiação. O argumento utilizado era pela falsidade ideológica dado que o declarante seria impotente naquela época e que a concepção do filho não se sustentava, porque eles não haviam tido nenhum relacionamento quando ele foi gerado. A ação foi julgada improcedente e transitou em julgado. Na tentativa de reavaliar a possiblidade de ajuizamento de nova ação declaratória de nulidade, a professora Grinover ponderou que não havia óbice da coisa julgada para o ajuizamento da ação. Dinamarco relata que agiu corretamente Grinover porque deve haver um equilíbrio entre segurança jurídica e justiça na práxis processual. Afirma, outrossim, que, de acordo com Pontes de Miranda, “se levou longe demais a noção de coisa julgada” que não é considerada de forma dogmática em outros sistemas jurídicos, e. g., como os Estados Unidos.
Outro caso digno de nota diz respeito a um outro parecer, desta vez produzido por Humberto Theodoro, emitido para a Procuradoria do Estado de São Paulo, em que se propugnava pela relativização de decisão judicial definitiva em relação a multiplicidade de sentenças que condenavam o Estado de São Paulo a indenizar o mesmo proprietário pelo mesmo imóvel. Relata o professor que já não cabia mais ação rescisória. O parecer foi acolhido em sede de recurso especial pelo ministro José Augusto Delgado (Júnior & Faria, 2002).
A propósito, o ministro José Delgado foi uma das grandes vozes dentro do poder judiciário que defendeu a relativização da coisa julgada. Considerava que as sentenças que representam uma ofensa à Constituição jamais poderão ter força de coisa julgada, podendo desconstituídas a qualquer tempo (Câmara, 2008, p. 24 ). Silva (2008) relata um dos votos do ministro em um processo em que discutia sua reabertura baseando-se em rediscussão da paternidade com base em exames de DNA, em que o ministro Delgado propugna que “a grave injustiça não deve prevalecer em época nenhuma [...] a segurança imposta pela coisa julgada há de imperar quando o ato que a gerou, a expressão sentencial, não esteja contaminada por desvios graves que afrontem o ideal de justiça” (Silva, 2008, p. 311).
Dinamarco propõe uma evolução no sistema de justiça e interpretação sistemática dos princípios constitucionais e do processo civil, uma vez que nenhum princípio é absoluto ou deve ser considerado um fim em si mesmo. Além disso ressalta que a justiça das decisões é o que qualifica o acesso e tutela das decisões judiciais, tornando-se uma preocupação tanto da doutrina quanto dos tribunais no sentido de que “não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização das incertezas” (Dinamarco, 2003, pp. 222-227).
Aspectos históricos da relativização da res iudicata
Em um primeiro momento se analisa o instituto no contexto da evolução das nulidades no direito romano. Na fase legis actiones, o reconhecimento da inexistência da sentença ocorria na fase da execução. No processo formulário, a nulidade era entendida como uma sanção ao descumprimento das normas. Deste modo, após a condenação, era possível contestar a existência ou validade da sentença. No período republicano a anulação de sentenças tinha por base decisões injustas e o instituto hábil ao desfazimento era o restitutio in integrum (Júnior, Araujo & Sartori, 2020).
A partir da fusão do direito romano com o germânico, utilizou-se, de modo autônomo, da querela nullitatis, instrumento apto a atacar sentenças nulas, maculadas por error in procedendo. Já no que concerne às decisões injustas, havia recurso próprio, que é chamada de appellatio (Batista, 2003; Júnior, Lima & Novak, 2020). Tais instrumentos eram previstos por prazo definido. Um exemplo é o estatuto de Modena, em 1.327, que previa um prazo de 30 (trinta) dias para a querela nullitatis e 10 (dez) dias para a apelação (Ramina, 2011, p. 7 ).
O instituto teve uma repercussão bem isolada na história do direito português e brasileiro. Apenas com previsões sucintas em legislações esparsas. A primeira previsão está nas Ordenações Filipinas, livro III, título LXXV. 12 Posteriormente, houve a previsão no art. 741, I, do CPC de 1973 (Presidência da República, 1973) e no art. 525, §1º do CPC de 2015 (Presidência da República, 2015). O instituto da querela nulitatis diz respeito ao critério da existência 13 do ato jurídico e submete-se a ação declaratória. Por estes motivos, não está sujeita a prazos decadenciais. A ação rescisória, por sua vez, adota, para sua justificação, requisito de validade e por isso está sujeita limitação decadencial (Júnior, Lima & Novak, 2020, p. 5 ).
Outro momento histórico precursor da coisa jugada deu-se com um ato criado durante o III Reich, a Lei de Intervenção do Ministério Público no Processo civil (Gesetz über die Mitwirkung des Staatsanwalts in bürgerli- chen Rechtssachen - StAMG), que dava poderes ao Ministério Público para intervir no Processo Civil a fim de avaliar se uma sentença era justa ou não e se atendia aos anseios do povo alemão. Deste modo, se o referido órgão considerasse que a sentença fosse injusta poderia ajuizar uma ação rescisória (Wiederaufnahme des Verfahrens). De acordo com o §2º da StAMG, o promotor de justiça do reich (Oberreichsanwalt) poderia retomar um processo julgado no prazo de um ano se considerasse que havia problemas graves na decisão ou entendesse que a decisão fosse incorreta ou injusta. De acordo com Júnior e Nery, “injustiça da sentença era, pois, uma das causas de sua rescindibilidade pela ação rescisória alemã nazista” (Júnior & Nery, 2018, pp. 1.214-1.215). Afirma Arthur Büllow (1949):
Nach § 2 des “Staatsanwaltsgesetzes” konnte der Oberreichsanwalt beim Reichsgericht in rechtskräftig entschiedenen bürgerlichen Rechtssachen der ordentlichen Gerichte binnen eines Jahres nach Eintritt derRechtskraft die Wiederaufnahme des Verfahrens beantragen, wenn gegen die Richtigkeit der Entscheidung schwerwiegende rechtliche oder tatsächliche Bedenken bestanden 14 (p. 307).
Assim, a relativização era um instrumento de um governo totalitário, que, apesar de estar ancorado em ideais e princípios de justiça, baseava-se em padrões totalmente antidemocráticos e contrários ao direito e é um mecanismo autoritário que não deve ser incentivado. Afirmam, de modo, contundente, Júnior e Nery (2018) :
Interpretar a coisa julgada, se justa ou injusta, se ocorreu ou não, é instrumento do totalitarismo, de esquerda ou de direita, nada tendo a ver com democracia, com o Estado Democrático de Direito. Desconsiderar a coisa julgada é ofender a Carta Magna, deixando de dar aplicação ao princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (CF 1.º caput). De nada adianta a doutrina que defende essa tese pregar que seria de aplicação excepcional, pois, uma vez aceita, a cultura jurídica brasileira vai, seguramente, alargar os seus espectros -vide MS para dar efeito suspensivo a recurso que legalmente não o tinha, que, de medida excepcional, se tornou regra, como demonstra o passado recente da história do processo civil brasileiro-, de sorte que amanhã poderemos ter como regra a não existência da coisa julgada e como exceção, para pobres e não poderosos, a intangibilidade da coisa julgada. Essa afirmação é extraída da história do processo civil brasileiro e mundial e não mera especulação ou exercício de adivinhação. A inversão dos valores, em detrimento do Estado Democrático de Direito, não é providência que se deva prestigiar. Anote-se, por oportuno, que, mesmo com a ditadura totalitária no nacional-socialismo alemão, que não era fundada no Estado Democrático de Direito, os nazistas não ousaram “desconsiderar” a coisa julgada. Criaram uma nova causa de rescindibilidade da sentença de mérito para atacar a coisa julgada. Mas, repita-se, respeitaram-na e não a desconsideraram. No Brasil, que é República fundada no Estado Democrático de Direito, quer-se desconsiderar a coisa julgada, isto é, quer-se ser pior do que os nazistas. Isso é intolerável. O processo é instrumento da democracia e não o seu algoz (pp. 1214-1215).
Reforçam, ainda, o entendimento de que relativizar a coisa julgada implica ruir os fundamentos do Estado democrático de direito, entendendo-se como postura inadmissível, sobretudo diante de suas raízes históricas nefastas. Ademais, se a tendência de relativizar em excesso a lei e os pressupostos teóricos e históricos que sustentam o Estado Democrático de Direito, se confirmar a longo prazo, a relativização tornar-se-á regra e a segurança jurídica será vista somente como um elemento superado na história do direito e sem nenhuma relevância.
É digno de nota comentário de Lopes em que mencionam o movimento da Escola do Direito Alternativo, que teve suas raízes na Alemanha, que defende a prevalência do justo por natureza a qualquer custo ainda que com o desprezo da lei na hipótese de ela ser insuficiente. Tal posicionamento reacende a secular discussão entre o justo por natureza, com base jusnaturalista, e o justo por convenção, cujo cerne é positivista. Contudo é uma discussão infindável porque não há unanimidade do que se entende pelo justo, em qualquer das linhas que se adote (Lopes, 2001, p. 632). Alguns consideram o direito alternativo um movimento social, outros uma corrente jurídica, outros consideram o movimento apenas uma utopia, de se “construir uma sociedade materialmente justa, profunda e radicalmente democrática” (Bueno & Carvalho, 2004).
EFEITOS DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Tratar-se-á neste capítulo dos efeitos lógicos da relativização da coisa julgada graduada em sua maior intensidade. Isto é, baseia-se em um sistema jurídico em que todas as decisões judiciais são passíveis de serem questionadas indefinidamente. Tal suposição não adota as hipóteses positivadas de relativização da res iudicata, mas naquelas hipóteses baseadas exclusivamente na motivação de injustiça da decisão. Tal ressalva é importante por que não se defende que o direito à definitividade das decisões seja absoluta. A perspectiva defendida é que esta decisão não pode estar ao arbítrio do juiz decidir sponte propria, com base nos próprios valores, o que seja justo ou não, porque, segundo Goffredo Telles Junior, citado por Lopes, trata-se “do poder não fundado na lei, o poder contra a lei, é o poder discricionário. E exatamente, o poder que odiámos, porque é o poder dos ditadores e dos tiranos” (Lopes, 2001, p. 632).
O Direito e seu estatuto científico
A finalidade do positivismo jurídico foi a de tornar o estudo do direito característico das ciências naturais, físico matemáticas. O principal elemento destas ciências é que o valor é totalmente desconsiderado e não possui nenhuma relevância nestes padrões epistemológicos. Assim, diferenciam-se os juízos de fato dos juízos de valor. Radbruch afirma que Kant ensinava sobre a impossibilidade de se derivar do ser o dever ser. É uma contradição nos termos extrair valor dos fatos. Os valores somente operam por dedução, enquanto as ciências naturais segue a lógica da indução. (Radbruch, 1997, pp. 47-48). Às ciências importam somente os juízos de fato. Isso ocorre porque os juízos de valor significam um posicionamento diante do real, isto é, a sua formulação tem por fim angariar posições e decisões a uma determinada linha de pensamento, enquanto o juízo de fato simplesmente informa, sem nenhum caráter prescricional (Bobbio, 1995, pp. 135-138 ).
Ainda que se tentasse pensar o direito numa amplitude puramente fática, tal entendimento não prosperou, uma vez que o próprio direito define valores que são relevantes para a convivência social e os escolhe como elementos norteadores das relações intersubjetivas (Almeida & Brito, 2010, p. 180 ). O paradigma se alterou em um momento pós-positivista, ao se atribuir normatividade aos princípios, 15 equiparando-os às normas, 16 de modo a se aproximar o direito de parâmetros éticos. Não é o objetivo deste artigo abordar distinções entre regras e princípios e as diretrizes da nova hermenêutica constitucional (Barroso & Barcellos, 2003, p. 147 ), apenas houve indicações de autores de peso sobre o assunto em notas a fim de que se possa buscar um maior aprofundamento. A questão central é desta relação entre regra e princípio e, sobretudo, da prevalência deste princípios sobre aquela. Ademais, é relevante a crítica de Humberto Theodoro. Ele desaprova a subversão cultural da modernidade que destrói valores fundantes da civilização, sejam éticos ou jurídicos. No domínio jurídico, ressalta-se a importância dos valores abstratos que “anulam a importância do direito legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos claros e precisos”. De resto, valores atendem à conveniência do intérprete, tornando o aplicador do direito prepotente que define, em última instância, o que bem entender nas circunstâncias concretas do caso em análise. É o famosa afirmação de que cada caso é um caso (Júnior, 2006, p. 17 ). O direito torna-se casuísmo e imune a previsões. Almeida e Brito destacam o princípio da segurança jurídica, porque no caos nada pode prosperar. Há uma necessidade diante do direito de se estabilizar as relações e conflitos sociais. Constitui-se, por conseguinte, numa garantia e num direito fundamental frente ao Estado.
O Estado Democrático de Direito tem, como um dos seus elementos fundantes a segurança jurídica. E nem poderia ser de outra forma. A própria ideia de Direito se confunde com a necessidade de segurança. Necessidade de dar estabilidade e clareza às relações sociais, de uma maneira que permita ao homem estabelecer ordem na vida social, é um dos escopos primordiais do Direito. Esta necessidade está, in- clusive, acima de outros valores também encampados pelo Direito (Almeida & Brito, 2010, p. 187 ).
A coisa julgada é a maior expressão do princípio da segurança jurídica em um ordenamento jurídico. Ao conceito de segurança jurídica são alheios a inexistência de erros no processo e a absoluta justiça da decisão. Isso ocorre porque o direito, e em especial o fluxo processual, não está imune aos erros, nem estão todas as experiências humanas. Deste modo, estabelecem-se alguns critérios para a aceitação da coisa julgada, quais sejam, a ficção de verdade em decorrência do processo e uma razão jurídico-política. Quanto ao primeiro elemento, já se dissertou anteriormente: nenhuma ação humana está imune a erros, independentemente das intenções envolvidas, nem a alta correção e obediência aos preceitos legais. Um ou outro processo apresentará erros, porque os sujeitos processuais não são infalíveis (Almeida & Brito, 2010, p. 195). Além disso, a sentença é atribuída “uma presunção de verdade ou de justiça em torno da solução dada ao litígio (res iudicata pro veritate habetur)” (Júnior, 2019).
Quanto à razão jurídico política, Humberto Theodoro afirma que o legislador teve por finalidade, ao instituir a coisa julgada, uma ordem prática de se impedir que as questões tratadas no processo sejam rediscutidas inde- finidamente, não sendo motivo para esta escolha a valoração da sentença diante dos fatos, definindo-os pelo estatuto da verdade (Júnior, 2019).
Direito, coerção e segurança
A relativização é vista como fenômeno desestabilizador e perturbador da segurança jurídica e da confiança, que, segundo Canotilho, são elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes princípios constituem-se direito do indivíduo em face do poder público de que suas decisões sejam alicerçadas em “normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos pre- vistos e prescritos no ordenamento jurídico” (Canotilho, 2003, p. 257). De acordo com o mesmo autor, o princípio da segurança pressupõe a precisão e a determinabilidade dos atos normativos, o que leva a duas conclusões, a clareza das normas e a densidade na regulamentação legal:
O princípio da determinabilidade das leis reconduz-se, sob o ponto de vista intrínseco, a duas ideias fundamentais. A primeira é a da exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. A segunda aponta para a exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo (ou um acto normativo em geral) que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos (Canotilho, 2003, p. 258 ).
A indeterminabilidade das decisões, em especial dos órgãos judicantes, e a insegurança gerada pelo caos judiciário pode conduzir, em condições extremas, à destruição dos fundamentos do direito. Em relação ao processo judicial, a indeterminabilidade do sistema jurídico atinge tanto o suposto vencedor quanto o sucumbente, porque ambos não terão certeza da do direito ou do dever e poderão sofrer revezes com decisões incertas de forma indefinida no tempo.
A adoção desregrada de princípios segue uma perversa tendência de se desconsiderar regras postas, confirmando-se o grave diagnóstico de Humberto Theodoro, ao afirmar que o direito se tornou estranho à lei. Até mesmo o legislador abdicou-se de legislar com precisão os preceitos organizadores e aplicáveis aos fatos sociais. De fato, positivam-se normas permeadas de cláusulas gerais e transforma-se o direito em uma carta de intenções valorativas 17 (Júnior, 2006, pp. 17-18 ). Tal diagnóstico incentiva a atribuição absoluta do estatuto de relatividade a todas as coisas, o que possibilita generalizada insegurança na aplicação do direito.
Deste modo, o fim último da coisa julgada não é tratar da certeza absoluta dos fatos nem atingir a verdade das coisas (númeno 18 ), mas atingir a segurança nas relações jurídicas, buscando-se atingir a estabilidade e imutabilidade, que, de acordo com Humberto Theodoro, esta busca ocorre à semelhança “do estável e imutável que é a verdade” (Júnior, 2019). É sempre oportuno lembrar da precisa observação de Pascal: “Justiça e verdades são dois pontos tão sutis que nossos instrumentos são cegos demais para tocá-los com exatidão. Se eles fizerem contato, eles enfraquecem o ponto e pressionam todo o mundo sobre o falso em vez do verdadeiro” (tradução livre). 19 Os instrumentos da justiça são incapazes de tocar a verdade em sua inteireza, de modo que a verdade dos fatos sempre será um pequeno fragmento de uma realidade que permanecerá intocada.
Quanto aos fins práticos, há um outro efeito benéfico ao Estado com a estabilização das demandas ocorridas no seu seio. Porque se houvesse uma trajetória infinita das discussões, a paz social não seria atingida, nem dispõe o Estado de recursos para discutir e buscar uma inatingível justiça ideal das decisões (Almeida & Brito, 2010, p. 197 ). Assim, o Estado estaria submerso em um circulo vicioso nietzschiano, 20 preso em um delírio infinito de discussões judiciais. A demarcação e a interdição da discussão judicial é um postulado de ordem prática e necessário à existência da utilidade do próprio direito. Além disso, considerando-se que uma discussão judicial envolve custos para as partes e que a ninguém interessa dispender mais recursos de transação do que o próprio bem da vida envolvido, há uma outra limitação de ordem econômica que delineia o interesse de agir individual.
Um outro fator a ser considerado, além da segurança é coerção 21 do direito que se torna comprometida com a discussão indefinida das controvérsias. Se não há uma interdição legal à continuidade do litígio, é porque o Estado é incapaz de exercer coerção sobre as escolhas que fizer em substituição às partes. Isso torna, por maior razão, o acesso à jurisdição uma decisão inútil e custosa, porque o Estado não é capaz de atribuir o bem da vida a quem de direito, porque não há coerção, nem pacifica os conflitos, gerando um dispêndio de recursos maior do que o próprio bem discutido em juízo. Isso revela que, em situações limites, relativizar todas as decisões definitivas importa em negar o acesso à jurisdição, porque ambas as partes estarão, ao fim do processo, mais desgastadas pelo peso do processo e mais pobres, porque despenderam recursos inutilmente sem resolver a questão fundamental que oportunizou o ajuizamento da ação.
Desestabilização dos fundamentos do Direito como efeito da relativização da coisa julgada
Levado a situações limites, e adotando-se a suposição de que em um sistema jurídico todas as decisões podem ser contestadas indefinidamente sob o argumento da justiça, chegaríamos às seguintes conclusões:
-
A coisa julgada é indispensável à afirmação do poder Estatal. Marinoni afirma que aos indivíduos não se permite a resolução dos seus conflitos por conta própria, cabendo ao Estado resolvê-los com definitividade por meio da jurisdição. Este mecanismo é um instrumento não somente capaz de solucionar conflitos mas de eliminá-los. Se não há definitividade das decisões estatais, a jurisdição perde sua razão de ser (Marinoni, 2010, p. 59).
-
A coisa julgada é corolário do direito de ação, pois além de se solucionar o litígio e tutelar um direito material, a parte vencedora tem direito a uma tutela jurisdicional estável, imune aos revezes de decisões indefinidas (Marinoni, 2010, p. 62 ).
-
Os institutos jurídicos possuem influência direta nos fatos sociais, de modo que, decisões públicas influenciam diretamente o comportamento das pessoas, isto é, o “os comportamentos coletivos são um produto do conjunto de ações dos membros de toda a coletividade (Rosa & Antunes, 2020, p. 51 ). Um sistema jurídico que incentiva revisão de decisões judiciais transitadas em julgada com base no argumento da justiça, abre uma infinidade de possíveis ações - o que aumenta o ciclo da litigância e reduz a segurança jurídica (Gico, 2020b) - para se questionar decisões já decididas, porque o conceito de justiça é aberto e a maioria dos que são sucumbentes consideram os motivos de sua irresignação razoes justas.
-
O direito perde o seu caráter de coerção, porque não consegue definir com definitividade o direito que a cada um é devido. Perdendo o elemento coerção, que, com o direito, são considerados complementos perfeitos (Gico Junior, 2020), o direito se torna inútil, porque é ineficaz para coordenar o comportamento social.
-
A relativização da coisa julgada induz a seleção adversa de demandas, já que o legítimo possuidor de um direito, em razões de hipossuficiência, poderá desistir ou renunciar a um direito em razão de persistência da outra parte.
-
Se todas as decisões com trânsito em julgado podem ser revisadas pelo critério da justiça, não haverá suporte a nenhum sistema de precedentes que se sustente. Por conseguinte, não será possível estabelecer um referencial de decisões a ser seguido e a percepção do juiz do que é justo e injusto será o único referencial. 22 Tendo-se como elementos objetivos as próprias decisões do juiz como um dado fenomênico, nem elas seriam consideradas como referencial, já tidas como um ser fora de si. O juiz, então se torna a medida de todas as coisas a partir de um critério pessoal de justiça. Poderia se pensar que se trata do juiz Hércules (Dworkin, 1997), um juiz imaginário que possui capacidades sobre humanas, mas não só isso, trata-se do surgimento de juízes solipsistas à maneira de René Descartes, cujo sujeito transcendental ficou preso na própria subjetividade, sem poder aferir a existência objetiva do mundo. Adotando-se, mais uma vez, dos conceitos de Habermas, esta situação indica características do agir dramatúrgico, em que o sujeito está preso nas suas próprias concepções de mundo. Ele não é capaz de compreender a realidade porque está encerrado nas próprias ideias e visões de mundo e acreditam que “a sua interpretação é a única possível” (Bettine, 2021, p. 23; 27 ). Pode-se interpretar o termo solipsismo judicial como um comportamento de um julgador que interdita a participação dos atores do processo e que atua de acordo com a própria subjetividade e os valores em que acredita (Delfino & Rossi, 2016, p. 8 ). Em uma das variantes filosóficas do termo, solipsismo (ontológico) significa que as únicas coisas que possuem relevância e significado existem apenas em estados mentais. Do ponto de vista do solipsismo comportamental, de acordo com The Cambridge dictionary of philosophy, os sujeitos comportam-se “de certa maneira, olhando para o que eles acreditam, desejam, esperam e temem. Devemos identificar esses estados psicológicos apenas com eventos que ocorrem dentro da mente ou do cérebro, não com eventos externos, uma vez que os primeiros são os causais próximos e suficientes explicações do comportamento corporal” (tradução livre). Original: “behave in certain ways by looking to what they believe, desire, hope, and fear, we should identify these psychological states only with events that occur inside the mind or brain, not with external events, since the former alone are the proximate and sufficient causal explanations of bodily behavior” (Audi, 1999, p. 861 ).
-
Diminuindo-se a segurança no direito pela relativização de todas as decisões, aumenta-se o hiato de expectativas de sucumbentes em decisões judiciais já com o trânsito em julgado (Gico Junior, 2020); adotando-se o pressuposto do homem médio de que todo sucumbente considera a decisão contrária aos seus interesses injusta, é possível que ajuíze outra ação questionando a decisão anterior. Contudo, independentemente da procedência ou não dos pedidos, não há nenhuma segurança que a segunda decisão seja mais justa que a primeira, e assim sucessivamente. A relativização da coisa julgada aumenta exponencialmente a revisão de demandas no judiciário. Combinando-se este fato com a incerteza de que o bem da vida possa ser atribuído a alguma das partes com a demora da demanda a jurisdição é, na prática negada, porque se impossibilita a atribuição do direito, desde modo, torna o direito um mecanismo de injustiça sob o signo do próprio princípio da justiça, tornando-o inútil o que, nas últimas consequências, não pacifica os litígios e pode induzir a comportamentos de autotutela pelos jurisdicionados, incentivando-se mecanismos de violência próprios do hipotético estado de natureza hobbesiano.
-
Como não há uma disposição infinita para a continuidade do litígio, seja por fatores psicológicos ou de recursos, uma das partes, ainda que possua razão a que lhe seja atribuído o bem da vida, acaba por submeter-se à vontade da parte que possua disposição de litigar ou que possua recursos para tanto. Assim, ocorre a fruição do bem da vida pela parte que hipoteticamente não teria direito, mas não em decorrência da coerção do judiciário, mas pela submissão ou renúncia da outra parte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso adotado ao longo do artigo conduz a um grave diagnósti- co: os fundamentos do direito correm perigo diante das inovações recentes que relativizam os institutos jurídicos em nome de princípios voláteis como o da justiça e de outros princípios jurídicos. Tais justificativas foram invocados, em momento histórico de triste lembrança, por governos totalitários para fazer imperar uma visão de mundo, exatamente aqueles que acreditavam na onipotência humana e cuja moralidade baseava-se na crença de que tudo é possível. 23 Afirma Hannah Arendt: “What binds these men together is a firm and sincere belief in human omnipotence. Their moral cynicism, their belief that everything is permitted, rests on the solid conviction that everything is possible. It” 24 (Arendt, 1973, p. 387).
Não se defendeu que as injustiças devem ser perpetuadas e que todas as decisões judiciais aberrantes devem ser mantidas. O sistema jurídico já prevê medidas de relativização típicas para se atacar determinadas decisões teratológicas e adequá-las ao ordenamento jurídico. Se não está de acordo com a dinâmica destes tempos, as modificações adequadas devem ser feitas de lege ferenda. O que se censura é a amplitude das revisões de decisões já transitadas em julgado por um motivo de injustiça do julgado, pois, trata-se de uma racionalização que permite a relativização de todas as decisões, dissolvendo-se no ar, tudo o que de sólido se construiu por séculos de experiência humana. E os efeitos são graves: se todas as decisões podem ser revistas, pode haver um fluxo incontrolável de demandas revisionais; novas decisões não são garantia de justiça nem de segurança; o direito perde sua utilidade como instrumento de pacificação social e, por fim, há uma seleção adversa das demandas, que, em regra, prosperam aquelas cujos sujeitos possuem mais recursos. Em último caso, há o recurso à autotutela, já que o direito é incapaz de solucionar os conflitos.